Paralelamente, a taxa de juros foi reduzida e hoje está próxima de
zero. Quando isso acontece, o país tende a ficar "menos atraente" aos
olhos dos investidores estrangeiros, que tendem a buscar outros mercados
com retornos maiores sobre seu capital.
Como resultado, o dólar perdeu valor ante as principais moedas globais. Mas não frente ao real.
Na verdade, a moeda brasileira se provou uma exceção, trilhando um
caminho contrário às divisas de outros muitos países, inclusive
emergentes: registrou forte desvalorização frente ao dólar no ano passado e recuperou-se um pouco nos últimos meses.
A série de gráficos a seguir, elaborados por Henrique Castro e Claudia
Yoshinaga, professores da Fundação Getulio Vargas (FGV), a pedido da BBC
News Brasil, mostra o comportamento do real frente ao dólar em três
períodos diferentes, de 31 de janeiro de 2020 a 29 de janeiro de 2021,
de 31 de julho de 2020 a 29 de janeiro de 2021 e, por fim, de 30 de
outubro de 2020 a 29 de janeiro de 2021.
Variação cambial frente ao dólar — Foto: Henrique Castro/Claudia Yoshinaga/BBC
Variação cambial frente ao dólar — Foto: Henrique Castro/Claudia Yoshinaga/BBC
Variação cambial frente ao dólar — Foto: Henrique Castro/Claudia Yoshinaga/BBC
Como se pode observar, no primeiro período, de 31 de janeiro de 2020 a 29 de janeiro de 2021, ou seja, desde o início da pandemia do coronavírus, o real perdeu quase 22% de seu valor frente à moeda americana, deixando para trás o limite "psicológico" de R$ 4 por dólar. Foi o pior desempenho entre as 30 moedas mais negociadas do mundo mais o peso argentino.
A partir de agosto, a sangria foi estancada, mas a moeda brasileira
seguiu apresentando desvalorização em relação à americana, porém, menor,
de cerca de 5%. Ainda assim, permaneceu como a de pior desempenho. E,
por fim, nos últimos três meses, desde novembro, o real reverteu
parcialmente a queda, valorizando-se em 5,6% ante a moeda americana.
Ainda assim, sobre uma base anteriormente baixa.
Apesar disso, nos último dias, o dólar voltou a se apreciar em relação
ao real. Na segunda-feira (21/02), a moeda americana abriu em forte alta
depois após o presidente
Jair Bolsonaro (sem partido) interferir no comando da Petrobras e
indicar o general Joaquim Silva e Luna para comandar a estatal. Além
disso, Bolsonaro disse um dia antes que vai "meter o dedo na energia
elétrica", e que, "se a imprensa está preocupada com a troca de ontem,
na semana que vem teremos mais".
Segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, esse 'descolamento'
do real das moedas de outros países, inclusive emergentes, se deveu
principalmente a questões internas, como risco fiscal e as incertezas
sobre a trajetória da dívida pública brasileira - ao passo que as
reformas prometidas pelo governo, principalmente aquelas que melhoram as
contas do governo, não foram aprovadas.
"Não há dúvida de que o fator doméstico preponderou no direcionamento
da taxa de câmbio. Se não fossem esses problemas locais bastantes
significativos, por causa da questão fiscal, era para a nossa taxa de
câmbio estar bem abaixo de R$ 5 por dólar", diz à BBC News Brasil Silvio
Campos Neto, economista e sócio da Tendência Consultoria, em São Paulo.
Claudia Yoshinaga, da FGV-SP, concorda. Ela acrescenta que as reformas
prometidas pelo presidente Jair Bolsonaro, com exceção da da
Previdência, não saíram do papel.
"A
situação fiscal do Brasil é preocupante. Existia uma perspectiva de
melhoria com a eleição de Bolsonaro, mas reformas aguardadas não se
concretizaram, com exceção da da Previdência, que não cumpriu exatamente
o que se esperava dela", assinala.
"No passado recente, tivemos a renúncia do presidente da Eletrobras, as
privatizações que não saíram do papel… A discussão agora é sobre a
prorrogação do auxílio emergencial, pois existe a preocupação de que
esse benefício crie um rombo que o governo não vai conseguir tapar",
acrescenta.
No início de fevereiro, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou que o
governo federal e o Congresso estão buscando formas de prorrogar o
auxílio emergencial. As negociações apontam que ele voltará em quatro
parcelas a serem pagas a partir de março ou abril deste ano. O
benefício, lançado para ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade
durante a pandemia, acabou no final de 2020. Por meio dele, 67,9 milhões
de beneficiários receberam parcelas de R$ 600 e depois R$ 300, ao custo
de R$ 293 bilhões para os cofres públicos.
Além disso, por causa da pandemia, o governo teve que expandir gastos. O
rombo nas contas do Tesouro foi de R$ 743 bilhões. Esse déficit ajudou a
aumentar a dívida pública, que foi de 74,3% para 89,3% do PIB (Produto
Interno Bruto, ou a soma dos bens e serviços produzidos por um país) em
um ano.
E o governo precisará pagar 57% dessa fatura, de R$ 1,4 trilhão, até o 1º semestre deste ano. Não
é uma tarefa fácil. Segundo análise da IFI (Instituição Fiscal
Independente) do Senado, o teto dos gastos públicos, aprovado em 2016
durante o governo de Michel Temer, corre riscos elevados de ser
descumprido neste ano.
Tudo isso preocupa os investidores — e impacta evidentemente o
comportamento do real frente ao dólar, assinalam os especialistas.
Segundo economistas, risco fiscal no Brasil teve impacto negativo na taxa de câmbio — Foto: Getty Images via BBC
Futuro
Mas qual será o comportamento do dólar daqui em diante?
"O
colapso do dólar apenas começou", disse Stephen Roach, professor da
Universidade Yale, nos EUA, e ex-presidente do banco de investimentos
Morgan Stanley na Ásia, à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC.
Roach prevê que a moeda poderá cair mais de 35% até o final deste ano com base em três grandes motivos.
O primeiro é que há um aumento acentuado do déficit em conta corrente
dos EUA, ou seja, o país paga mais no exterior pela troca de bens,
serviços e transferências do que recebe. Sua projeção é de que esse déficit continue a impulsionar a queda da moeda.
A segunda é a valorização do euro, depois que os governos da Alemanha e
da França concordaram com um pacote de estímulo fiscal, além da emissão
de títulos. E a terceira é que Roach prevê que o Banco Central
americano pouco faria para impedir a queda do dólar.
Com os EUA cada vez mais dependentes de capital estrangeiro para
compensar seu crescente déficit de poupança interna, explica ele, e com
as políticas adotadas pelo Fed que criam um grande excesso de liquidez,
"o argumento para um forte enfraquecimento do dólar parece mais
convincente do que nunca", argumenta.
Em relação aos efeitos que uma desvalorização do dólar tem sobre os
mercados emergentes (como Brasil, México, Argentina, Colômbia, Peru ou
Chile na América Latina), o especialista sugere que podem ocorrer
aumentos em algumas bolsas desses países.
Enquanto o Federal Reserve não aumentar as taxas de juros, que é o que
Roach presume que acontecerá, "a fraqueza do dólar deve causar aumentos
nos mercados acionários estrangeiros em geral e nas ações dos mercados
emergentes em particular."
"Sem exageros"
No entanto, outros economistas argumentam que, embora a moeda esteja um
pouco fraca este ano, em nenhum caso um "crash" deve ser esperado.
"A queda do dólar não deve ser exagerada", escreveu Mark Sobel,
presidente para os EUA do Fórum Oficial de Instituições Monetárias e
Financeiras (OMFIF), no início de janeiro no site do centro de estudos.
Em sua visão, há uma perspectiva "desalentadora" para o dólar.
"O dólar pode cair neste ano, mas uma perspectiva muito negativa não se justifica", disse Sobel.
Um dos argumentos é que o dólar já caiu bastante (13% em 2020 em
relação ao pico em março). Outra é que em meio às incertezas globais,
não é tão certo que os investidores prefiram arriscar e apostar em
outras moedas que não o dólar.
Paralelamente, Sobel também diz acreditar que pode haver condições
monetárias relativamente mais favoráveis nos EUA e que o atual ciclo de
dólar forte está simplesmente chegando ao fim. Ou seja, se as medidas de
estímulo para a retomada da economia no país forem bem-sucedidas, muito
provavelmente, o dólar pode voltar a se valorizar.
De fato, os juros de longo prazo nos EUA tiveram o maior aumento em um
ano, indicando a possibilidade de que esse cenário se concretize.
Em linha com a visão de Sobel, Campos Neto, da Tendências Consultoria,
diz não acreditar em uma forte queda do dólar. Falando sobre o Brasil,
ele nota que "apesar das dificuldades que temos, a percepção é que vai
se fazer o mínimo para solucionar esse problema (fiscal). Com isso,
nossa taxa de câmbio pode se aproximar do que o fator externo sugere,
uma taxa bem mais baixa", diz o economista, ressalvando "que todo esse
risco fiscal gera muita volatilidade".
Sua previsão é ligeiramente melhor do que a do mercado, que calcula que o dólar fechará 2021 cotado a R$ 5,05.
Yoshinaga, da FGV-SP, lembra que o comportamento do real frente do dólar deve depender da taxa de vacinação do Brasil.
"Se
a população é vacinada mais rapidamente, a atividade econômica tende a
se recuperar também com mais rapidez e a situação do país melhora", diz.
Quem ganha e quem perde
O real desvalorizado tem impacto não apenas no bolso de quem quer ou
precisa comprar dólares ou de quem adquire produtos importados.
A indústria nacional consome uma série de insumos importados, como é o
caso do segmento eletrônico. E há uma série de itens cuja formação de
preços acaba sendo influenciada pelas cotações internacionais, como é o
caso dos combustíveis e das commodities em geral.
O "dilema do arroz" é ilustrativa nesse sentido. A desvalorização —
além da maior demanda internacional, que tende a elevar os preços —
tende a aumentar a receita em reais de quem vende para fora. Assim, o
produtor às vezes prefere exportar do que vender no mercado interno. A
menor disponibilidade no mercado interno, por sua vez, empurra o preço
para cima no mercado doméstico.
A mesma lógica vale para o milho, para a soja, para o açúcar… Essa dinâmica ajuda a explicar porque os alimentos subiram tanto de preço nos últimos meses.